sábado, 11 de agosto de 2012

VALE A PENA ENSINAR LITERATURA???


                              


   Tempos difíceis... Como já estamos habituados há décadas, é grande o descaso da sociedade para com o ensino. As greves de profissionais do setor são ignoradas pelos governantes, na expectativa de que o tempo irá corroem o ímpeto dos mestres, colocando-os diante do desafio de não prejudicar seus alunos.  Isto tudo alimenta a hipocrisia generalizada, aquela visão segundo a qual somos todos a favor, mas o que vamos fazer? Um aspecto há nisso tudo para o qual pouco se presta atenção: o que está em jogo não é se os alunos perderão o ano ou não, mas sim, e principalmente, como ficará a qualidade do ensino que lhes é ministrada... O que lhes é ensinado? Para quê? Estamos formando gerações para o futuro exercício pleno da cidadania, para o gozo de direitos e o exercício de deveres sociais? Estamos formando pessoas capazes de assumir responsabilidades e pensar criticamente soluções para os problemas do país?
      Acho que é momento pra se colocar vários tópicos em discussão, desde a eficácia do recurso à greve, como também a necessidade de se criar outros espaços para se compartilhar conhecimento, se concretizar experiências de ensino também fora dos muros das escolas e universidades. Tenho pensado muito nisso, Criar projetos de levar o ensino de Literatura para fora do ambiente acadêmico, fora dos limites estreitos desta instituição tão debilitada como a escola. 
     Bem, antes de prosseguir, vale uma pergunta: vale a pena estudar/ensinar/compartilhar Literatura? Num mundo em que tantos desafios se oferecem ao homem, eu inverto a pergunta: vale a pena perder tempo debatendo se é importante ou não trabalhar com nossos alunos uma disciplina que tem tudo para estimular a imaginação e a criatividade? Claro que já me comprometo com um certo tipo de ensino de Literatura. Fica subentendido que não estou tratando aqui da mera decoreba de nomes e datas, e sim do convívio pleno e efetivo dos alunos com o texto literário, como objeto de leitura, análise, debate, e também como oportunidade para o aprimoramento da capacidade de expressão escrita. Sim, de quebra, estaremos formando os talentos do futuro.
     Dito isso, fica claro que estamos tratando do ensino, da produção de conhecimento numa área das mais essenciais para o ser humano. A arte literária diz respeito ao pleno exercício da faculdade da imaginação, instrumento de ação e participação que faz de cada um de nós plenamente humanos. Diante de um mundo mecanizado, como o nosso, mais do que nunca se coloca como essencial o debate e a produção de novos projetos para o ensino de Literatura.
      Não é de se surpreender o desprestígio da disciplina dentro da escola atualmente. No senso comum alimenta-se a visão de que estudar só se justifica dentro de uma perspectiva de profissionalização a mais imediata possível. A tecnocracia produtivista que caracteriza o capitalismo industrial e financeiro faz as pessoas pensarem apenas em valorizar o que seja "útil", numa acepção restrita de "rentável". Ora, nossa disciplina articula conhecimentos e experiências que acompanham a todos os seres humanos a qualquer momento, ao longo da vida. Não damos um conteúdo a ser memorizado e depois esquecido ou aplicado na vida profissional. Trabalhamos conteúdos que passam a circular na corrente sanguínea de cada pessoa, pois a Literatura é para todos.
      Por isso é que reitero que o caminho é pensar alternativas, de modo a chamar a atenção da sociedade para a importância do aprendizado, o aprimoramento do letramento literário. O desafio é grande, mas é nisso que tenho pensado atualmente. Foi o que me levou a imaginar a criação do projeto "Poesia Cantada e Ensino de Literatura".
     Com efeito, não é preciso muito esforço para verificarmos empiricamente, em nosso cotidiano, que a canção popular é a modalidade de texto poético com a qual nosso povo está mais habituado, que o acompanha como o seu quinhão diário de ficção e lirismo, para usarmos a expressão feliz do mestre Antonio Candido. Por este motivo, tenho me interessado na construção de propostas de ensino de Literatura que passem pelo intenso aproveitamento da canção. Além de ter seu ensino justificado por se tratar, ela própria, de uma modalidade de poesia, ainda tem tudo para se transformar em valiosos aliado na criação de estratégias de ensino dinâmicas e criativas, que criem condições para que os alunos de todos os níveis de ensino, e mesmo para interessados em nossas oficinas fora da escola, se familiarizem cada vez mais com as outras modalidades de texto literário.

     O trabalho já começou, tenho encontrado já alguns parceiros valiosos entre meus alunos, mas ainda temos muito trabalho pela frente.

Referência Bibliográfica:

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vparios Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012


O LUGAR SOCIAL DA POESIA
Chicco Lacerda

.... O título deste texto é uma provocação e um convite à reflexão. Que lugar terá a poesia na sociedade em que vivemos? Bem, sem querer esgotar o tema, vou propor algumas observações. Espero que elas sirvam somente como ponto de partida para o debate...
Sem dúvida, já faz tempo que a ditadura militar acabou, mas sua companheira inseparável, a ditadura do mercado, continua. Um dos problemas básicos que um poeta sempre enfrenta, um desafio mesmo, é colocar seu trabalho no mercado e encontrar quem o remunere. De outra forma, como conseguirá sustentar a si próprio e seguir criando seu caminho em palavras e gestos pelo mundo. Faço parte de uma geração que encontrou seus rumos pagando seus livros do próprio bolso e buscando cavar espaços de divulgação em saraus e outras modalidades de performances poéticas. Ou seja, revelamos nossa capacidade de nos impor no cenário poético na medida em que conseguimos bancar e fazer circular nossos livros. Ninguém a nos financiar... No máximo, a esperança de uma recompensa futura: a posteridade é prometida como o paraíso aos antigos penitentes...
.... Bem, vale destacar que o recurso ao autofinanciamento não é novidade alguma na História da Literatura Brasileira. Os primeiros livros de Manuel Bandeira só foram possíveis graças a este recurso, o mesmo acontecendo com Alguma Poesia, obra de estréia de Carlos Drummond de Andrade, só para citar como exemplos os dois poetas mais celebrados de nosso século XX. Os editores só passaram a investir neles quando os dois já tinham um público cativo, obtido pela militância de ambos no Movimento Modernista e por sua participação na imprensa, como cronistas. Os empresários da área editorial do Brasil não querem saber da menor chance de risco. Essa situação pouco tem mudado ao longo dos anos.
.... Já que falei na ditadura do mercado, vou partir para um exemplo que vivi dentro de um espaço típico do momento social que vivemos, um shopping center. Outro dia, numa loja, a moça do balcão, quando eu falei que era professor de literatura, disse que odiava literatura, era “a matéria mais chata que existia”. Acho que aí se encontra uma pista preciosa para o problema da dificuldade que encontramos hoje em ampliar o público da poesia e do texto literário em geral. Presumo que a menina esteja no ensino médio, preparando-se para o vestibular, e o que é apresentado para ela como “literatura” é a velha e insuportável esquematização dos “estilos de época”, insuportáveis pílulas de decoreba que têm afastado tantos jovens de um convívio sadio e verdadeiro com o texto literário. Enquanto for empurrada pela goela dos jovens como obrigação, como um estorvo, a poesia não vai deixar essa galera encantada, e sem provocar encantamento, ela não faz sentido. Vou me arriscar um pouco mais e dizer: como obrigação de estudo, a poesia não existe, o que existe é a memorização mecânica de nomes, datas e dados biográficos de alguns autores, que muitas vezes os jovens nem lêem. Ficar sabendo que um dia existiu um sujeito chamado Castro Alves, que hoje tem estátua e nome de praça em Salvador não é estudar literatura. A maioria dos adolescentes simplesmente suporta os “estilos de época”, faz o vestibular e depois esquece tudo. Agora, imaginem se o professor, em vez disso, fizer uma performance na hora do recreio, declamando:

....... Adormecida - Castro Alves

Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Uma rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras
Iam na face trêmulos – beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a ...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio
P’ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio.

*

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
“Ó flor! – tu és a virgem das campin0as!
Virgem! – tu és a flor da minha vida!... 2

.... Isso seria um acontecimento, boa parte dos alunos ficaria tocada pela sutil sensualidade do poema e teria uma idéia um pouco mais clara de quem foi, ou melhor, de quem é Castro Alves. Mas teria que ser algo inesperado, guerrilheiro, surpreendente, alegre. O universo em que a poesia passa a fazer sentido é mesmo a surpresa, o jogo, o lúdico, a brincadeira. Perguntei àquela balconista se nunca tinha se divertido ou se emocionado com nenhum texto que tivesse lido ou escutado. Uma canção, por exemplo... Ela não respondeu. Talvez não estivesse preparada para ouvir tão simples provocação. Depois disso, já estava na hora de sair. Não sei se consegui deixar a semente, ajudá-la a avançar na compreensão do que é “literatura” de verdade...
.... Um mergulho na história da cultura nos ajudará a refletir sobre o lugar social da poesia. Ela nasceu nas brincadeiras de roda que os povos antigos faziam em volta da fogueira, quando caía a noite. Junto com ela, nasceram a dança e a música, suas irmãs gêmeas, que aliás, foram durante séculos inseparáveis. Tudo aquilo era um ritual, uma festa. Jamais deve ter passado pela cabeça dos homens de certas sociedades ancestrais a possibilidade de que um dia essas três artes estariam separadas, como ocorre na cultura ocidental erudita. Agindo como elemento de coesão social dos grupos humanos, a poesia era transmitida oralmente. Foi o primado da “poesia-para-ser-ouvida” para usar uma expressão de Augusto de Campos 3. Mais do que isso, foi o primado da poesia para ser compartilhada. Todos os membros de uma comunidade se reconheciam nos textos que seus poetas cantavam nas festas ou mesmo em ocasiões fortuitas. O fluxo do texto era o próprio fluxo sangüíneo do grupo. Ambos eram faces da mesma realidade. Não havia separação alguma entre a poesia e a vida. Não seria preciso frisar o prestígio que tinham os poetas nessa época, nem questionar o lugar social da poesia em tal época, já que isso era bem evidente. Assim se sentiam os gregos antigos, sempre que ouviam um de seus poetas recitando trechos da Ilíada e da Odisséia. Eram os dois poemas épicos que faziam todos os indivíduos se sentirem membros de uma mesma comunidade.
.... Veio o tempo e foi transformando tudo. Aliás, o tempo vem sendo uma preocupação constante de poetas de todos os povos e todas as épocas. A invenção da escrita já levou grande parte da produção poética dos homens para as páginas dos livros. Mas isso não quer dizer que a poesia se mudou de mala e cuia do universo da transmissão vocal para a linguagem escrita. Ambas as modalidades de transmissão de poesia conviveram em harmonia por séculos. Ainda mais porque o acesso à escrita costumava ser um privilégio social restrito a poucos. A grande maioria da população continuava tendo ao seu alcance somente a poesia oral. E continuava a se divertir, a se emocionar, compartilhar a poesia, prestigiar seus poetas. Só que, enquanto a poesia-para-ser-ouvida florescia nos campos ou nas ruas das cidades, os poetas letrados passaram a ocupar um novo espaço social – o palácio. Cada vez mais, em vez de compartilhar com o povo de suas experiências de vida, passaram a viver em companhia dos príncipes e nobres. Esse foi o começo da separação entre o que ainda hoje designamos por “poesia popular” e a “poesia erudita”. Cada uma delas passou a presumir um espaço social diferente. O jogral, como era chamado na Idade Média européia o poeta popular, vivia da contribuição que recolhia entre seus ouvintes, quando cantava ou declamava seus textos, nas feiras e festas. O poeta palaciano passou a ser sustentado por seu rico protetor, o “mecenas”. Rudes, uns, requintados, outros, mas ambos úteis, sem a menor dúvida. O poeta erudito exaltava as virtudes do príncipe, o jogral cantava as alegria e dores do povo. Ambos tinham em comum a predileção por certos temas, entre os quais o amor era o que mais se destacava.
.... Veio o capitalismo, a Revolução Industrial foi varrendo o mundo e sujando-o com suas chaminés. Os povoados camponeses europeus, que eram conhecidas na França como “comunas” e em Portugal como “aldeias” começaram a se desagregar com o êxodo rural, a urbanização. O jogral não desapareceu, mas sem dúvida se empobreceu ainda mais, empurrado para o que o crítico e historiador canadense Paul Zumthor 4 qualifica como “subproletariado cultural”. E o poeta erudito? Que sorte lhe coube? Quantos dólares será que lhe pagam hoje em direitos autorais? Aí está a questão, os nobres que os protegiam foram perdendo seu antigo poder, e a burguesia, nova classe dominante, quase sempre estava ocupada demais com lucros e cifras para prestar atenção ao que diziam os poetas. De certa forma, a sorte os reaproximou dos jograis. Tanto os poetas populares, como os eruditos foram rejeitados, o que tem muito a ver com a nova idelogia vigente. Quem não tinha em vista objetivos práticos, de preferência em alguma iniciativa que resultasse em dividendos financeiros, era posto à margem. Quer dizer: os poetas que se virassem, se quisessem continuar sobrevivendo de literatura, eles que procurassem o seu próprio mercado consumidor. Do contrário, a sarjeta, que acabou se tornando a opção consciente e convicta de alguns dos maiores literatos da época.
.... A figura emblemática dos novos tempos era a do poeta francês Charles Baudelaire, perambulando sem rumo pelas ruas de Paris. Coube a ele dizer que os poetas tinham perdido sua “aura”. Entenda-se bem: ele estava se referindo aos poetas eruditos, letrados como ele, que já não eram mais vistos como especiais, seu dom não tinha mais valor algum, era apenas mais um, perdido na multidão aglomerada dos centros urbanos. Sua reação foi de recusa. Criou o que pode ser considerado uma torre de marfim, uma expressão poética incompreensível para os homens de seu tempo. Mas não o fez por elitismo, puro e simples, antes como uma revolta contra a situação que se estava criando, um mundo de homens sem rosto. É interessante questionar até que ponto essa postura já antecipava o que veio a ser conhecido, mais de cem anos mais tarde, como poeta marginal no Brasil, ainda mais tendo em vista que nossa Revolução Industrial e foi tardia, obra do século XX, assim como o nosso crescimento urbano desordenado.
.... O capitalismo industrial havia criado a ditadura do lucro, da utilidade, disfarçada em ideologia liberal. Cito um exemplo da professora e ensaísta Leyla Perrone-Moisés 5: o que é mais fácil de se entender, o que faz mais sentido: um poema, um extrato de banco ou um formulário de declaração do imposto de renda? Dentro da lógica do capitalismo, são o extrato e o formulário. Ele têm um objetivo “prático”, servem para alguma coisa. E a nossa amiga, lá do exemplo que eu dei, no seu balcão da loja do shopping não deve sentir embaraço algum diante dos códigos e siglas que vê embaralhadas em seu extrato bancário ou contracheque. Leyla com isso quer mostrar que o problema das pessoas não é com as dificuldades que o poema oferece à leitura, ou seja, com seu hermetismo, mas à sua aparente inutilidade. Ler poesia requer uma predisposição, dá trabalho ao leitor, incomoda, revolve o lodo, o prazer mórbido de sua preguiça, e isso sem prometer nenhuma recompensa imediata, nenhuma informação objetiva, nenhum “lucro”. Então seria por isso que os leitores resistem tanto à idéia de ler, comprar, consumir poesia. Conclusão: dispensamos a poesia do cotidiano, mas isso não é porque os textos poéticos sejam difíceis, mas por estarmos imbuídos, encharcados da ideologia dominante, que nos dias de hoje é o neoliberalismo.
.... Indo um pouco além, aceitando a provocação, podemos propor o discurso poético como uma anti-ideologia, um discurso contra-hegemônico. Platão predisse, em sua República, que os poetas seriam expulsos do convívio social. Ninguém imaginaria que sua intuição estava captando algo que ocorreria tantos séculos depois, no contexto de afirmação do capitalismo. Ora, retomando os exemplos usados pela Profa. Leyla, podemos dizer que o poema desmascara a pretensa objetividade dos outros textos, na medida em que nos faz perceber que todos eles são linguagem e dessa forma podem ser usados para enganar e manipular. Curioso é como os técnicos do FMI nos fazem engolir suas fórmulas como se fossem mágicas. Veja como o logro, a trapaça é clara e cristalina. Então, vocês ainda acham que a poesia é inútil. Ela é a única modalidade de linguagem que assume que está jogando com palavras, signos, letras. É a única que nos dá uma margem de escolha, é a única que podemos recusar, numa sociedade que tem a ousadia de se afirmar “democrática”. Para ilustrar esta reflexão, recorro a um autor importante de nossa tradição.

...... Madrugada - Manuel Bandeira

As estrela tremem no ar frio, no céu frio...
E no ar frio pinga, levíssima, a orvalhada.
Nem mais um ruído corta o silêncio da estrada,
Senão na ribanceira um vago murmúrio.

Tudo dorme. Eu, no entanto, olho o espaço sombrio.
Pensando em ti, ó doce imagem adorada!...
As estrelas tremem no ar frio, no céu frio,
E no ar frio pingam gotas da orvalhada...

E enquanto penso em ti, no meu sonho erradio,
Sentindo a dor atroz dessa ânsia incontentada,
- Fora, aos beijos glaciais e cruéis da geada,
Tremem as flores, treme e foge, ondeando o rio,

E as estrelas tremem no ar frio, no céu frio. 6

...... Não precisamos de muito esforço para perceber a riqueza do jogo de palavras e idéias proposto por Bandeira. O discurso pretensamente objetivo da ciência esta aí mesmo para nos lembras que as estrelas não tremem de frio, como o poema, num artifício inteligente, sugere sem afirmar com clareza. Muito pelo contrário, elas são astros que geram calor próprio. O poema Madrugada, analisado à fria luz da razão seria um texto absurdo. Mas, felizmente, a riqueza simbólica de nossa cultura costuma chamar de “estrelas” pessoas brilhantes, mulheres lindas etc. Pronto, quem disse que é absurdo imaginar que as estrelas tremam de frio?
...... No Brasil dos últimos anos, aproveitando-me mais uma vez do exemplo do “poeta marginal”, o que está em questão, em parte, é uma resistência cultural às ditaduras do cotidiano, mas também e principalmente, o debate do lugar social da poesia. Aparentemente, vivemos tempos de avanço técnico e industrial, de discursos objetivos. Então, o que fazer com o tipo de discurso que desafia a suposta objetividade dos demais? Simples, colocá-lo à margem, fazer com que as pessoas o encarem como uma excentricidade de meia dúzia de loucos. Para o Brasil entrar de vez no rol das potências industriais do planeta (acreditem, os militares nos prometeram isso) fazia-se preciso dar prioridade total aos discursos “objetivos”.
Ah, mas muitos virão me dizer que finalmente agora tudo melhorou, que chegou a nossa vez. O Brasil é a bola da vez, que é um dos mercados mais promissores do planeta, que o futuro chegou ao país que tinha cansado de esperar por ele. Vamos com calma! Quero ver o futuro nos olhos dos meninos que vendem balas nos sinais de trânsito, quero ver se a riqueza que tem sido gerada vai ser dividida com um mínimo de equidade e justiça. Para então afastarmos de vez a hipótese de que tudo o que está acontecendo agora é que o capitalismo global escolheu o Brasil pelo simples fato de que os mais antigos países industriais encontram-se esgotados... Neste caso, seria chegada a nossa vez... vez de virar a bagaço para a moenda. Vamos aguardar os acontecimentos, antes de qualquer celebração. Ainda mais porque, vejam, onde estão os investimentos básicos no ensino e outras áreas prioritárias, que poderiam garantir ao povo uma qualidade de vida melhor?
...... Agora veja o que acontece: no mundo de hoje ninguém pergunta ao jovem no que ele terá prazer em trabalhar quando crescer. Os próprios pais castram a possibilidade de realização plena de um filho ao dar toda a prioridade na colocação que ele virá a ter no mercado de trabalho. Ora, se eu fosse tomar minhas decisões pela cotação do mercado não estaria aqui, nem como poeta e nem mesmo como professor. Não sei onde eu estaria agora, mas com certeza estaria muito triste. Isso é apenas um exemplo da tirania que nos é imposta pela obediência cega às leis do mercado. Falo isso porque sei as dificuldades que vocês, estudantes de Letras vão ter para encontrar um lugar ao sol quando terminarem a faculdade. Mas jamais desistam, a não ser que percebam que a vocação verdadeira de vocês não é essa. Sugiro uma estratégia malandra de sobrevivência. Estar aqui e lá ao mesmo tempo, curtir e ralar. Ser amigo do rei e ao mesmo tempo dar-se ao desfrute de beber cerveja com os guerrilheiros que sonham em derrubá-lo. Sei que é difícil. O monstro Sist, como Raul Seixas designava o sistema gosta de ter adesão total. Vive nos dando um ultimato, como este que os governantes norte-americanos deram ao resto do mundo pouco antes de começarem a despejar bombas no Afeganistão.
...... Não será por isso mesmo que o discurso poético incomoda tanto, tornando cômodo aos donos do poder mantê-lo à margem? Desde que comecei a fazer parte da cena literária, venho recusando sistematicamente a pecha de “marginal”. Não estamos à margem, muito ao contrário, estamos no coração das feridas da sociedade brasileira. Dispomos de um discurso que desmascara a impostura das outras modalidades de texto, essas que, ao se fingem de “práticas” e “sérias”, nos envolvem no logro de um discurso que serve à ditadura do mercado, nos tornam peças de uma engrenagem. Por isso, amigos, o prefácio de meu livro Simples Flerte, agora em segunda edição, adverte que os poemas são úteis para fazermos felizes as pessoas que amamos, mas não para quem pensa em usá-los para ganhar dinheiro. Usem a poesia, sem medo, jamais deletem este deleite em suas vidas, é o convite que eu faço, é a essência da proposta estética que venho trazer. Meu livro assume às claras a proposta de conduzir os leitores ao deleite, ele já anda sendo usados por muitos para paquerar ou mesmo para massagear o ego (é o caso das mulheres que homenageei com acrósticos.) Acho isso ótimo. Quero mais é que a auto-estima delas esteja em alta, mesmo. Ser humano é romper as barreiras do marasmo e criar a felicidade
...... Sem pretensão alguma a ser original nesta proposta, creio que, com este livro, joguei por terra a suposição de que a poesia não tem utilidade para a vida social. Proposta que volta de forma mais elaborada em meu livro seguinte, Fragmomentos. Digo que não há novidade alguma nisso porque a proposta de poetizar a sociedade já era discutido pelo círculo dos românticos de Iena, nos últimos anos do século XVIII. Depois disso, viemos, muitos outros, buscando colocar em prática algo que para eles não passou de um projeto.
...... De tudo o que foi exposto, fica a indicação clara de que a produção poética que circula pelas veias do Brasil tem tudo para alcançar um público mais amplo e variado. Mas é preciso repensar constantemente os caminhos que usamos para tentar isso. Recusar a falácia de que a atividade poética é para poucos, procurar alternativas de compartilhamento. A internet é uma parte da resposta, mas não é tudo. Acho que boa parte da solução ainda parte pelo recurso à oralidade. E não devemos ter preconceitos de nenhum tipo. Claro que levar poesia às escolas é fundamental, mas onde houver a chance de levá-la ás igrejas, por que não? Se temos a chance de realizar saraus dentro de shoppings centers, por que não? Já fiz um pouco dessas coisas todas, e continuo com sede de saídas. Não me conformo com o marasmo em que me querem prender.


Notas:

1 – CAMPOS, Augusto e Haroldo de. ReVisão de Sousândrade. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, p.237.
2 – BRAYNER, Sônia (org.). A poesia no Brasil – das origens até 1920. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981, p. 255.
3 – CAMPOS, Augusto. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo, Perspectiva, 1968.
4 – ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz – a “literatura” medieval. São Paulo, Companhia das Letras,1993.
5 – PERRONE-MOISÉS, Leila. Inútil poesia e outros ensaios breves. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
6 – BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, p. 69.

Outras Indicações Bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. (Obras Escolhidas, vol III). São Paulo: Brasiliente, 1989
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CANCLINI. Nestor G. Consumidores e Cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.
EAGLETON, Crítica política, in: Teoria de Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.